A gaúcha Débora de Aranha Haupt, 32 anos, sofreu um
acidente de moto com o marido quando ia para a aula de inglês. Ele cortou o
joelho, ela ficou tetraplégica. Com o tempo, Débora recuperou parte dos
movimentos dos braços e decidiu que, mesmo presa a uma cadeira de rodas, não
abdicaria do sonho da maternidade. Seis anos e vários tratamentos depois, ela
deu à luz Manuela, que completou um ano no último mês de janeiro
Conheci o amor da minha vida dançando. Durante cinco
anos, Jair e eu viajamos pelo Rio Grande do Sul participando de concursos de
dança tradicional gaúcha. Tinha 17 anos quando me apaixonei por ele. Eu
trabalhava muito. Em Farroupilha, durante o dia, ajudava meus pais com o
negócio deles e, à noite, dava aulas de espanhol em uma escola de Bento Gonçalves,
cidade vizinha. Naquela época, ainda não tinha formação universitária, mas era
ótima professora. Comecei meio sem querer, mas logo percebi que ensinar me
realizava.
Quando fui
convidada a lecionar espanhol em tempo integral, aceitei imediatamente. Eu
tinha 26 anos e já estava casada com o Jair há três. Tinha certeza de que minha
carreira iria decolar. De cara, me tornei professora de 11 turmas. Dava aulas
de manhã, à tarde e à noite todos os dias, e às sextas-feiras, ia para a escola
aprender inglês. Mas essa rotina durou apenas um mês.
SAIBA MAIS
Jair e eu marcamos uma viagem de final de semana. Como em
outras sextas-feiras, ele me daria carona até a escola para a aula de inglês.
De lá, sairíamos para encontrar uns amigos e seguir viagem. Por isso, nossa
moto estava abarrotada de mochilas e ele dirigia devagar. Perto das 5h da tarde
do dia 25 de agosto de 2006, saímos da nossa casa e pegamos a estrada para
percorrer os conhecidos 20 e poucos quilômetros que separam Farroupilha, onde
morávamos, de Bento Gonçalves, onde eu trabalhava e estudava. O dia estava
lindo. Logo à nossa frente, dois carros esperavam, um ao lado do outro, para
cruzar a estrada por onde seguíamos. O primeiro arrancou para atravessar a via,
mas nos viu e parou a tempo. O motorista do segundo carro fez quase o mesmo. Só
que ele não nos viu. E não parou.
O ACIDENTE
Fui arremessada e, como um mergulhador que bate a cabeça
no fundo do lago, bati com força no asfalto. Meu capacete resistiu, mas sabia
que algo sério tinha acontecido. Não senti nada. Pior: percebia que não sentia
nada. Do pescoço para baixo, meu corpo parecia estar preso num sono profundo.
Não perdi a consciência. Tive medo. Vi o socorro chegar. Vi o hospital. Vi os
médicos e senti, por fim, que estava salva. Mas não senti quando uma agulha
alfinetou os meus pés. Nem as minhas pernas. Nem a minha barriga. Nem os meus
braços. O diagnóstico era conclusivo: fiquei tetraplégica.
De tão ciente da
gravidade do meu estado, meu único alívio era não correr o risco de morrer, que
eu corria sem saber. Uma cirurgia deveria implantar réplicas de titânio nas
três vértebras que a tragédia tirou de mim. Fui submetida à primeira operação
dois dias após o acidente. E a segunda ficou para a semana seguinte, a mesma em
que meu pai foi diagnosticado com câncer.
Não era fácil admitir que eu não podia mexer um só dedo.
Não era fácil ter alguém escovando meus dentes, me dando comida na boca. Mas
nunca me entreguei. Durante os dias em que fiquei entubada, não conseguia
falar, mas ria. Ria porque sabia que a minha vontade de viver era tão importante
para a minha recuperação quanto a medicina que me salvou do acidente. Foram 45
dias de hospitalização: 30 na UTI e 15 no quarto. Nos primeiros dias do
pós-operatório, tive uma surpresa maravilhosa.O inchaço do trauma e das
cirurgias começou a diminuir, e eu recuperei parte do movimento dos meus
braços. Até hoje, a minha mobilidade é a mesma. Sensibilidade total, só dos
ombros para cima. Consigo segurar uma xícara, mas não mexo as mãos, que ficam o
tempo todo quase fechadas.
SAIBA MAIS
Enquanto estava sob tratamento intensivo, tive três
pneumonias. Essa inflamação respiratória e a lesão na medula deixaram parte de
um dos meus pulmões seriamente debilitada. De acordo com os médicos, essa
porção quase morta teria de ser retirada cirurgicamente. De novo, não me
entreguei. Com ajuda de fisioterapia, fiz meus pulmões renascerem, voltarem ao
normal sem cirurgia.
A UTI se transformou na minha residência naquele mês de
internação, entre agosto e setembro de 2006. Tanto que chorei com as
enfermeiras quando recebi alta para o quarto. Depois dos últimos 15 dias no
hospital, iria finalmente voltar para a minha casa. Mas não estava pronta para
voltar para o meu quarto. Havia escadas entre nós. Até que pudéssemos adaptar
os ambientes, o que consegui fazer graças a uma herança deixada por meu avô,
voltei a morar com os meus pais. Infelizmente, o que me esperava lá estava
longe de ser um alívio. Debilitado por causa do tratamento contra o câncer, meu
pai, assim como eu, estava preso a uma cadeira de rodas. Dependíamos da minha
mãe e do meu marido para tudo e nenhum de nós sabia como lidar com a situação.
Era muito difícil, mas tentávamos deixar tudo mais leve, ríamos juntos da nossa
tragédia.
Quatro meses depois do acidente, fui pela primeira vez a
Brasília, onde comecei um tratamento na Rede Sarah, que oferece reabilitação
totalmente gratuita. Lá, com instrumentos adaptados às minhas mãos, reaprendi a
escovar os dentes, a pentear meu cabelo, a comer sozinha. Nunca tinha segurado
um pincel, mas até a pintar, eu aprendi. Com um apoio enorme do Jair – que do
acidente só ganhou um corte no joelho –, da minha família, da dele e da equipe
do hospital, fui encaixando a minha vida nos eixos da minha cadeira de rodas.
Seis semanas depois, voltei para a minha casa. Só não digo que voltei a ser a
Débora de sempre porque, no fundo, nunca deixei de ser quem eu era.
SAIBA MAIS
Claro que não é possível ter uma mudança de vida como a
minha sem sentir por tudo que não se pode mais fazer. Eu amava dançar. Até que
fui a uma festa de casamento e vi todo mundo feliz, dançando, e fiquei
arrasada. Mas lembrei do que uma psicóloga do Sarah me disse. Ela me fez
prometer que, na primeira vez que sentisse vontade de dançar, eu dançaria.
Olhei para a pista e pensei: “Quer saber? Vou lá!”. Foi a minha libertação.
Dancei como pude, sentada, mas dancei. E nunca mais deixei de me divertir só
porque tinha que dançar sobre a cadeira. Seis meses depois daquela sexta-feira,
eu estava de volta às aulas ensinando espanhol. Foi nessa época que perdi meu
pai.
No fim das contas, o meu acidente e a doença dele nos
colocaram de volta na mesma casa, e ganhamos de presente a convivência diária
nos últimos meses da vida dele.
Fui professora por mais um ano e meio e, durante esse
período, resolvi fazer faculdade. Prestei vestibular em duas universidades.
Passei em ambas e optei pela que oferecia ensino à distância. Com as adaptações
desenvolvidas em Brasília, consegui usar o computador, o que tornou possível
conquistar o meu diploma em Letras. Mas dar aulas já não me realizava mais. Não
conseguia escrever no quadro com a mesma agilidade nem solucionar as dúvidas
dos alunos como fazia antes, e isso me frustrava. A ideia não era voltar a
trabalhar só para me sentir útil. Meu plano era ser feliz. E fazer o meu marido
feliz também.
Jair e eu fomos um casal desde muito cedo, passamos uma
vida juntos, aprendendo juntos. A questão sexual sempre me preocupou. Nós
tivemos que nos conhecer de novo, começar do zero. No Sarah, existe um programa
de reeducação sexual. A troca de experiências é muito importante. Na minha
primeira reunião, uma das meninas comentou que a vida sexual dela tinha
melhorado muito depois da lesão medular. E eu que, seis meses depois do
acidente, ainda não tinha transado, era só ouvidos.
Em seguida, resolvi testar a teoria. A primeira vez foi
complicada, porque nenhum de nós sabia exatamente o que fazer. Eu não sabia o
que ia sentir e tinha medo de não sentir nada, de ficar inerte. Mas foi
maravilhoso. Vi que era possível sentir prazer e fazer o meu marido feliz. Nós
só precisaríamos de calma para descobrir exatamente como. A comparação entre as
sensações de antes e depois é inevitável, mas é parte de um processo de
aprendizagem, como em qualquer relacionamento. Hoje, nós dois sabemos que, por
mais incrível que pareça, um dos lugares onde eu mais tenho sensibilidade é
justamente na nuca, no local da minha lesão.
As pessoas acham que cadeirantes não têm vida sexual e
esquecem que eu, por exemplo, tenho um casamento de nove anos. O Jair me
surpreende todos os dias. Seria um horror se ele me abandonasse, mas nunca
deixei de falar sobre as nossas dificuldades por medo de correr esse risco.
Jamais admitiria que ele continuasse comigo por pena. Cheguei a ter medo que
ele se sentisse culpado pelo acidente, mas isso não aconteceu. Não temos
sequelas psicológicas, pois não tínhamos como evitar o acidente. Quero que ele
esteja do meu lado sempre. Existem algumas dificuldades, mas existem outras
graças. Garanto que poucas pessoas sabem como é fazer sexo numa cadeira de
rodas. É só ter criatividade. Chegaram a perguntar se a minha gravidez foi
resultado de inseminação artificial. Lógico que não. Fazer a Manu foi uma
delícia!
SAIBA MAIS
Preparei-me psicologicamente durante dois anos para a
gravidez. Para uma mãe, saber que não poderá atender todas as necessidades de
um filho dói muito. Voltei ao Sarah para buscar orientação e, como
acompanhamento de uma médica especialista em gravidez de alto risco, começamos
as tentativas para ter um bebê em dezembro de 2010.
Em abril, quando já estávamos acostumados comas
negativas, alguns amigos nos convidaram para fazer uma viagem a Las Vegas dali
a algum tempo. Achamos uma boa ideia. Mas a minha menstruação atrasou. Fiz os
cálculos e, caso estivesse grávida, iria para Las Vegas com uma barriga de
cinco meses. Preferi esperar para ter certeza da gravidez antes de comprar as
passagens. Pedi para o Jair comprar um teste de gravidez. Deu positivo. Quando
contamos aos amigos que não viajaríamos, foi uma festa. Todos sabiam o motivo.
Nunca um cancelamento foi tão comemorado como aquele. Recebi o diploma
universitário exibindo a minha barriga.
A gravidez foi muito tranquila. Normalmente, as gestantes
como eu fazem cesariana com anestesia geral. Eu, que passei pelo horror do meu
acidente sem perder um segundo de consciência, não admitiria dormir no
nascimento da minha filha. Os médicos pesquisaram e concluíram que eu poderia
tê-la de parto normal. Mas as dores preocupavam. Não é porque não sinto dor que
ela deixa de existir – o fenômeno chama-se disreflexia. Quando tenho uma dor de
estômago, não sinto o incômodo localizado, mas posso ter calafrios ou dor de
cabeça, por exemplo. É esse tipo de sensação que me avisa quando algo não está
bem no meu corpo. Por isso, mesmo não tendo sensibilidade, o parto da Manu foi
com analgesia. As contrações vieram em forma de arrepios. Deve ter sido o parto
mais tranquilo de todos os tempos. A sala estava à meia luz, uma música
clássica tocava baixinho. O engraçado é que era eu quem dizia para a
enfermeira: “Força, Karen, força!”, porque quem fazia o esforço todo era ela,
empurrando a minha barriga a cada contração. Todo mundo chorou quando a Manuela
nasceu, no dia 10 de janeiro de 2012. Foi lindo.
Com a Manu, desde sempre, foi incrível. No início, vivi
momentos de pavor. Não conseguia acalmar a minha própria filha. Toda mãe sente
insegurança, mas acho que senti mais. Isso porque tinha que delegar a outras
pessoas muitos cuidados. Mas sabia que seria assim. Amamentei tranquilamente,
mas precisava de alguém do meu lado o tempo todo. Chorei, tive medo e não posso
negar que, às vezes, fico triste pelo que não posso fazer por ela. Mas todo o
resto que consigo fazer é tão bom e tão maior... Todos os dias descubro formas
de estar mais perto da minha filha. Não troco fraldas, não consigo dar banho.
As minhas mãos nesses momentos são as do Jair ou as da Vera, a babá, mas estou sempre
ao lado. Consigo dar mamadeira, brinco com ela.
A Manu se acostumou a brincar comigo sem estar no meu
colo. Coloco-a sobre a mesa e beijo, abraço, aperto. A Manu já bate palmas com
as mãozinhas fechadas, como as minhas, que não consigo mais abrir. Parece que
ela sabe. Se o Jair chega perto dela, estica os braços e pede colo, pede para
sair do berço.
Comigo, não. Ela pode até reclamar que cansou da
brincadeira, mas não me pede o que não posso dar. E fica louca com a minha
cadeira! É lindo ver que a Manu escuta, reconhece o barulho do motor da cadeira
e sabe quando estou chegando. Sei que o que ficou do acidente é para o resto da
minha vida. E também que, independentemente de quem seja, sempre vou precisar
de alguém ao meu lado.
No meio da noite, se estiver em uma posição
desconfortável, vou precisar acordar o Jair e pedir: “Amor, me vira?”. E ele
vai estar ali para me virar. Sempre fomos muito unidos, mas hoje nossa ligação
aumentou. Quando a Manu crescer mais um pouco, vou fazer uma pós-graduação e
voltar a trabalhar. Mas, agora, o que eu mais quero é ver a minha filha
caminhando para mim, correndo em direção à minha cadeira, subindo nela e
dançando com a gente.”
Fonte,Marie Claire-RS