terça-feira, 10 de março de 2015

De muletas, jovem percorre 4 países africanos e ajuda refugiados de guerra

A jornalista Jéssica Paula Prego, durante viagem pela África (Foto: Jéssica Paula Preto/Arquivo Pessoal)

Raquel Moraes do G1 DF

Ideia surgiu no fim da graduação em jornalismo na Universidade de Brasília.Calor estragou muleta, ela foi expulsa do Sudão e ainda contraiu malária.

Procurando uma boa desculpa para viajar, a jornalista Jéssica Paula Prego decidiu aproveitar o trabalho de conclusão de curso na Universidade de Brasília para pesquisar a realidade de países que vivem guerras civis. As leituras a respeito a deixaram compadecida: havia poucas informações sobre o tema, e até mesmo a ONU trazia dados imprecisos. A garota, que é deficiente física e anda de muletas, entendeu ser aquela a sua missão, juntou os R$ 4,2 mil que havia guardado da mesada e partiu para a África. A experiência deve virar livro no mês que vem, contando como ela se sentiu quando improvisou uma canga com estampa do Cristo Redentor como véu, foi expulsa do Sudão e ainda contraiu malária.
"Decidi que iria escrever sobre refugiados porque com certeza encontraria histórias incríveis e, principalmente, porque praticamente ninguém escreveu uma boa narrativa sobre eles", lembra a menina. "Planejei a viagem para Etiópia, Sudão, Sudão do Sul e Uganda. A escolha deles foi porque o Sudão é um país polêmico, tem um dos maiores números de crianças soldados, e algumas regiões ainda vivem em um conflito armado. Por ser uma ditadura, poucos sabem sobre o que acontece por lá."

A família da jornalista aceitou a ideia com certa relutância. Antes de fazer a viagem, Jéssica passou seis meses tentando levantar informações sobre as fronteiras, estradas e voos entre os países e descobriu que só conseguiria saber a maior parte das coisas pessoalmente, "se arriscando". O itinerário começou pela Etiópia, em 24 de maio de 2013.

"A maioria dos meus conceitos mudou. Descobri que há cidades da Etiópia muito mais seguras do que a maioria das cidades brasileiras – o índice de assaltos, por exemplo, é baixíssimo. Antes eu achava que os refugiados escolhiam ir morar nos campos de refugiados em busca de uma vida melhor, mas não. As milícias atacam os vilarejos, estupram as mulheres, matam os homens e sequestram as crianças. Todos saem correndo, se escondem na mata e acabam sendo encontrados por ONGs, como a Cruz Vermelha, que os levam para os campos. A maioria deles nunca mais viu a família. Foi por isso uma das conversas mais emocionantes que tive [quando] um refugiado me perguntou se eu tinha pai e mãe. Eu respondi que sim, e ele mal podia acreditar", conta.
                    Mãe e filho refugiados em país africano (Foto: Jéssica Paula Preto/Arquivo Pessoal)

As surpresas continuaram ao longo dos dois meses, quando percorreu os outros países. Quando a jovem chegou ao Sudão do Sul, o país havia completado um ano e ainda não tinha reconhecimento de outras federações. Jéssica foi uma das primeiras brasileiras a pisar no lugar. A maioria dos trajetos foi feito em vans e ônibus.
"Uganda tem uma forte milícia – a de Joseph Kony [líder do Exército da Resistência do Senhor], um dos dez [terrorista] mais procurados do mundo – , que tem associação política com o governo sudanês", conta a garota. "É interessante porque todos dizem que sou muito corajosa, mas acredito que o corajoso é aquele que enfrenta o medo, e eu não sentia medo. Pode ser até falta de juízo mesmo, mas não acredito que sou assim tão corajosa."

                                        Família em campo refugiado na África-Foto Jéssica

Mesmo lembrando com saudade do trabalho, Jéssica não esconde que enfrentou várias dificuldades. Ela precisou de um disfarce e ainda assim foi expulsa do Sudão, conviveu com muitas pessoas que só falavam árabe – enquanto ela tentava se comunicar em inglês, não achou vasos sanitários e precisou se valer de buracos no chão, sofreu ameaças e viu as borrachinhas das muletas derreterem por causa do calor de 52 °C.
"Eu não tinha o véu, tinha uma canga que servia para tudo. Como é proibido entrar estrangeiros lá, seria impossível conseguir chegar tranquilamente sem usar o véu. Diziam que os fiscais iriam me barrar na primeira barreira policial, mas, como me enrolei na canga, consegui chegar até a cidade ilesa. O homem que foi comigo trabalhava em uma ONG para órfãos da guerra e ele estava com medo que eu fosse sozinha. Então fingimos ser casados, pois uma mulher viajando sozinha pelo Sudão boa coisa não é. A independência feminina lá ainda é algo distante", afirma.
A expulsão ocorreu porque a entrada de estrangeiros na região é proibida. Jéssica diz que conheceu então como funcionava a ditadura. "E no fim da viagem peguei malária. Dependi da ajuda de verdadeiros anjos, o funcionário do hotel em que eu estava e um amigo missionário egípcio, que me carregaram para o hospital. Eu realmente estava muito mal, mas a médica tentou me tranquilizar dizendo que era 'só malária'. Depois de cinco dias fiquei melhor."
Aprendizado
A jovem conta que o convívio com os refugiados a ensinou a não condenar nenhuma cultura ou religião. Um dos momentos que mais a emocionou, conta, foi quando um rapaz disse saber que ela estava ali por causa deles e pediu que ela contasse ao mundo que aquelas pessoas existiam.

"Os muçulmanos terão para sempre todo meu respeito, ainda que existam as exceções, [como] terroristas, por exemplo, e ainda que eu não concorde com suas atitudes. Ainda acredito que uma criança não deveria se tornar soldado, mas eu entendo porque elas se tornam soldados e, de fato, naquele contexto, não há melhor opção", explica.
                                                   Menino Africano-Foto Jéssica

Jéssica fez 800 fotos da viagem e planeja usar 46 em um livro, escrito ao longo de dez meses, que deve ser publicado em abril. Entre os maiores ganhos que ela enumera está o fato de ter mudado a forma como enxerga a si mesma. Vítima de uma infecção na medula aos 6 anos, ela precisou reaprender a sentar, engatinhar e andar.
"Acredito que antes eu tinha necessidade de provar que eu era boa em algo e que eu não era apenas mais uma deficiente, mas hoje percebo que o que me move é simplesmente fazer o que amo. É muito gostoso olhar para trás, ver que foi o maior perrengue, que não foi fácil, mas que consegui fazer um trabalho de que me orgulho. Porque dei meu máximo. E, mais do que isso, carregar tanta experiência incrível é fascinante, acho que meus netos vão se orgulhar", brinca. "Percebi que a deficiência não era empecilho, muito pelo contrário. Ela acabou me aproximando das pessoas. É só saber usas as armas que a gente tem."

                                                  Jéssica junto com refugiados



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Tradução