É com grande prazer que realizo minha primeira contribuição para esta prestigiosa coluna, fruto da
Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, abordando tema de tamanha atualidade e importância.
Publicou-se
em 07 de julho de 2015 a Lei 13.146/2015, Lei Brasileira de Inclusão da
Pessoa com Deficiência, também nomeada de Estatuto da Pessoa com
Deficiência, com
vacatio legis de 180 dias. Traz o Estatuto
diversas garantias para os portadores de deficiência de todos os tipos,
com reflexos nas mais diversas áreas do Direito. Nesta coluna o que se
abordará é a importante mudança que provoca no regime das incapacidades
do Código Civil brasileiro, no que toca ao portador de transtorno
mental[1].
Historicamente no direito brasileiro, o portador de
transtorno mental foi tratado como incapaz. Com algumas variações de
termos e grau, assim foi nas Ordenações Filipinas, no Código Civil de
1916 e também no atual Código Civil de 2002, até o presente momento. Sob
a justificativa da sua proteção foi ele rubricado como incapaz, com
claro prejuízo à sua autonomia e, muitas vezes, dignidade[2].
Desnecessário
grande esforço para mostrar como o portador de transtorno mental foi
tratado como cidadão de segunda classe, encarcerado sem julgamento,
submetido a tratamentos sub-humanos. As narrativas sobre o Colônia[3]
valem por todas, e a elas remete-se o leitor que quiser se inteirar
sobre as atrocidades que já foram cometidas por aqueles que se
encontravam no dever de atuar como guardiões dos portadores de
transtorno mental. Realiza-se tal ressalva para que não se pense que
surgem do éter as mudanças operadas pelo Estatuto. São, ao contrário,
fruto de ações do Movimento de Luta Antimanicomial e da reforma
psiquiátrica, que encontram suas raízes formais no Brasil mais
fortemente a partir da década de 1980[4].
Feito este breve
introito, pode-se passar ao ponto central desta coluna, que é a
modificação do regime das incapacidades no atual Código, por conta do
Estatuto. Em resumo, retirou-se o portador de transtorno mental da
condição de incapaz, com a revogação de boa parte dos artigos 3º e 4º,
que passarão a ter a seguinte redação:
“Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos.
I - (Revogado);
II - (Revogado);
III - (Revogado).
“Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:
.....................................................................................
II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico;
III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;
.............................................................................................
Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial.”
Assim,
o fato de um sujeito possuir transtorno mental de qualquer natureza,
não faz com que ele, automaticamente, se insira no rol dos incapazes. É
um passo importante na busca pela promoção da igualdade dos sujeitos
portadores de transtorno mental, já que se dissocia o transtorno da
necessária incapacidade. Mas é também uma grande mudança em todo o
sistema das incapacidades, que merece cuidadosa análise.
A mudança
apontada não implica, entretanto, que o portador de transtorno mental
não possa vir a ter a sua capacidade limitada para a prática de certos
atos. Mantém-se a possibilidade de que venha ele a ser submetido ao
regime de curatela. O que se afasta, repise-se, é a sua condição de
incapaz. Esta determinação da nova lei, aliás, reforça entendimento que
já se havia defendido em tese de doutorado, sobre a necessária distinção
entre transtorno mental, incapacidade e curatela.
A avaliação de
existência de transtorno mental é algo que cabe ao campo médico, ou da
psicanálise, sendo mais comumente objeto de estudo da psiquiatria e da
psicopatologia. Os diagnósticos de transtorno mental na medicina
costumam atualmente ser feitos com base no
Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders
(DSM), documento formulado pela Associação Americana de Psiquiatria,
que se encontra atualmente na sua quinta edição (DSM 5), publicada
oficialmente em 18 de maio de 2013.
Destaque-se que diversas são
as críticas feitas a tal documento[5], dada a amplitude de quadros que
lá são alvo de diagnóstico, de modo que, dificilmente, um sujeito
transcorrerá sua vida sem que em qualquer momento tenha possuído algum
transtorno. O colunista e o próprio leitor, muito possivelmente, se
encontram neste exato momento acometidos de algum dos transtornos lá
descritos. Assim, não há relação necessária entre o sujeito ser portador
de um transtorno mental e não possuir capacidade cognitiva ou de
discernimento.
A incapacidade, por sua vez, é categoria jurídica,
estado civil aplicável a determinados sujeitos por conta de questões
relativas ao seu status pessoal. Pode decorrer tanto da simples
inexperiência de vida, como por conta de circunstâncias outras, tais
como o vício em drogas de qualquer natureza. Dentre estas
circunstâncias, até a chegada do Estatuto que ora se discute,
encontrava-se o transtorno mental, sob as mais diversas denominações
(enfermidade ou deficiência mental, excepcionais sem desenvolvimento
mental completo). Independe a incapacidade de decretação judicial.
Enquadrando-se o sujeito numa das hipóteses previstas no suporte fático
normativo, é ele incapaz e, portanto, ao menos de algum modo limitado na
prática dos seus atos.
Já a curatela, que se estabelece a partir
do processo de interdição, visa determinar os limites da incapacidade do
sujeito para a prática de certos atos, bem como constituir um curador
que venha a representá-lo ou assisti-lo nos atos jurídicos que venha a
praticar. E é justamente sobre a curatela e a interdição que se faz
sentir grande reflexo na mudança do sistema das incapacidades no Código
Civil.
Isto porque a regra passa a ser a garantia do exercício da
capacidade legal por parte do portador de transtorno mental, em
igualdade de condições com os demais sujeitos (artigo 84, Estatuto da
Pessoa com Deficiência). A curatela passa a ter o caráter de medida
excepcional, extraordinária, a ser adotada somente quando e na medida em
que for necessária. Tanto assim que restaram revogados os incisos I, II
e IV, do artigo 1.767, do Código Civil, em que se afirmava que os
portadores de transtorno mental estariam sujeitos à curatela. Não mais
estão;podem estar, e entender o grau de tal mudança é crucial.
Diz
textualmente a nova lei (artigo 84, parágrafo 3º) que a curatela deverá
ser "proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e
durará o menor tempo possível". Legisla-se assim a obrigatoriedade da
aplicação de
tailored measures, que levem em conta as
circunstâncias de cada caso concreto, afastando a tão comum saída,
utilizada até então de forma quase total, de simples decretação da
incapacidade absoluta com a limitação integral da capacidade do
sujeito[6]. A isto, aliás, conecta-se também a necessidade da exposição
de motivos pelo magistrado, que agora terá, ainda mais, que justificar
as razões pelas quais limita a capacidade do sujeito para a prática de
certos atos.
Ademais, tornou-se lei também a determinação de que a
curatela afeta apenas os aspectos patrimoniais, mantendo o portador de
transtorno mental o controle sobre os aspectos existenciais da sua vida,
a exemplo do "direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à
privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto", expressamente
apontados no artigo 85, parágrafo 1º, do Estatuto. Já era sem tempo a
necessidade de reconhecer que eventual necessidade de proteção
patrimonial não poderia implicar em desnecessária limitação aos direitos
existenciais do sujeito[7]. Reforça-se, com tudo isto, que a curatela é
medida que deve ser tomada em benefício do portador de transtorno
mental, sem que lhe sejam impostas restrições indevidas.
Também
nesse sentido corrigiu-se, aliás, falha que o Novo Código de Processo
Civil tinha perdido a oportunidade de reparar[8], com a possibilidade de
ser a curatela requerida pelo próprio portador de transtorno mental.
Afinal, ninguém mais legítimo do que o próprio sujeito que será alvo da
medida para requerê-la.
Esta correção, entretanto, terá pouco
tempo de vida. Isto porque ela se dará a partir de inserção de inciso no
artigo 1.768, do Código Civil, que, por sua vez,em breve será revogado
por força de previsão expressa do artigo 1.072, II, do Novo CPC. Devido à
tramitação temporal sobreposta entre o Estatuto da Pessoa com
Deficiência e o Novo CPC, tal detalhe provavelmente não foi notado pelo
legislador. Melhor solução se encontrará com novo projeto de lei que
determine a inserção de um novo inciso no artigo 747 do Novo CPC,
legitimando o próprio sujeito que virá a ser submetido ao regime de
curatela a requerer a interdição, o que desde já se sugere.
Inseriu-se
também no sistema do Código Civil, através do novo artigo 1.783-A, novo
modelo alternativo ao da curatela, que é o da tomada de decisão
apoiada. Neste, por iniciativa da pessoa com deficiência, são nomeadas
pelo menos duas pessoas idôneas "com as quais mantenha vínculos e que
gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão
sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações
necessários para que possa exercer sua capacidade." É modelo que guarda
certa similaridade com a ideia da assistência, mas que com ela não se
confunde, já que o sujeito que toma a decisão apoiada não é incapaz.
Privilegia-se,
assim, o espaço de escolha do portador de transtorno mental, que pode
constituir em torno de si uma rede de sujeitos baseada na confiança que
neles tem, para lhe auxiliar nos atos da vida. Justamente o oposto do
que podia antes acontecer, em algumas situações de curatela fixadas à
revelia e contra os interesses do portador de transtornos mentais. Como
novo modelo, muito há que se discutir ainda a seu respeito, mas
certamente não de modo suficiente no espaço desta coluna.
A par
destas mudanças que tratam especificamente da incapacidade, muitos
outros reflexos ainda se podem sentir no Código Civil, como a
possibilidade do portador de transtorno mental agora servir como
testemunha, ou de poder se casar sem necessidade de autorização de
curador. Certamente grande será também o impacto em toda a teoria do
negócio jurídico e nas situações negociais em geral, em decorrência do
afastamento de considerável gama das causas de invalidade.
Outro ponto,
ainda a ser analisado com o passar do tempo, diz respeito à situação
dos sujeitos, portadores de transtorno mental, que já se encontram
sujeitos ao regime de curatela, sobretudo aqueles considerados
absolutamente incapazes. Haverá necessidade de revisão de todas as
sentenças diante do novo status destes sujeitos? Estarão os curadores já
constituídos aptos a entender e pôr em prática a nova realidade?
Diversas
são as questões que surgirão nos próximos anos, por força desta
impactante mudança na capacidade dos portadores de transtorno mental.
Questões estas que poderão ser alvo de nova abordagem em futura coluna
aqui na
Conjur, bem como em artigo a ser publicado na Revista de Direito Civil Contemporâneo.
[1]
Opta-se aqui pelo uso do termo portador de transtorno mental, pelos
seguintes fundamentos: “O termo ‘transtorno’ é usado por toda a
classificação, de forma a evitar problemas ainda maiores inerentes ao
uso de termos tais como ‘doença’ ou ‘enfermidade’. ‘Transtorno’ não é um
termo exato, porém é usado aqui para indicar a existência de um
conjunto de sintomas ou comportamentos clinicamente reconhecível
associado, na maioria dos casos, a sofrimento e interferência com
funções pessoais. Desvio ou conflito social sozinho, sem disfunção
pessoal, não deve ser incluído em transtorno mental, como aqui
definido”. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (coord); tradução: CAETANO,
Dorgival. Classificação de transtornos mentais e de comportamento da
CID-10: Descrições Clínicas e Diretrizes Diagnósticas. Porto Alegre:
Artmed, 1993, p.5.
[2] Por todos, ver os clássicos: FOUCAULT,
Michel. História da loucura: na idade clássica. 9.ed. São Paulo:
Perspectiva, 2012; GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação
da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1975; GOFFMAN, Erving.
Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2013.
[3] ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro: genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil. São Paulo: Geração, 2013.
[4]
NUNES, Karla Gomes. De loucos perigosos a usuários cidadãos: sobre a
produção de sujeitos no contexto das políticas públicas de saúde mental
(tese de doutorado). Porto Alegre: UFRGS, 2013. Disponível em <
http://www.lume.ufrgs.br>. Acesso em 03 dez 2014, p.114-116.
[5] BEZERRA, Benilton. A história da psicopatologia no Brasil. Disponível em
. Acesso em 03 mar 2014.
[6] ABREU, Célia Barbosa. Curatela e interdição civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.82;143.
[7]
REQUIÃO, Maurício. Autonomias e suas limitações. In: Revista de direito
privado, ano 15, vol.60. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p.95.
[8]
REQUIÃO, Maurício. Considerações sobre a interdição no projeto do Novo
Código de Processo Civil. In: Revista de Processo, v. 40, n. 239. São
Paulo: Revista dos Tribunais, p. 453-465.