Fernanda Mayumi Kobayashi
Advogada
A questão da deficiência no ser humano é tema presente há muito tempo na história da humanidade. O Estado, como responsável pelo tratamento adequado das pessoas com deficiência, tem o dever de implementar medidas de proteção que viabilizem o exercício de direitos e liberdades fundamentais por parte desses sujeitos. A sociedade, igualmente, tem o seu papel: dedicar mais atenção e respeito às problemáticas que envolvem a vida de uma pessoa com deficiência em nosso País.
Cientes dessa responsabilidade, é hora de levantar algumas considerações a respeito da inclusão das pessoas com deficiência na denominada mediação de conflitos. É possível considerar os espaços voltados à essa prática realmente acessíveis? Os mediadores estão preparados para lidar com esse público no dia a dia da profissão? E quais seriam as medidas necessárias para a inclusão efetiva desses sujeitos no novo cenário da mediação?
Desde já, é possível destacar ao menos duas perspectivas pelas quais o tema pode ser abordado: por um lado, os desafios no acesso de pessoas com deficiência à formação profissional para que atuem como mediadores e, por outro, as dificuldades dessas pessoas quando inseridas na posição de mediados, isto é, na condição de sujeitos que recorrem à mediação para o tratamento de seus conflitos.
Para fins da presente análise, e não deixando de reconhecer imprescindível o debate sobre todas as faces do problema, serão priorizados os desafios da segunda abordagem, isto é, daqueles decorrentes de situações em que um ou mais mediados são pessoas com deficiência.
Existem diversos critérios para definir o conceito de pessoa com deficiência. Em termos etimológicos, o dicionário [1] traz algumas definições. Já o Estatuto da Pessoa com Deficiência [2], em seu art. 2º, considera pessoa com deficiência “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”. Vale notar que tal definição equipara-se à prevista na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pelo Decreto n. 6949/09 [3].
Sem a pretensão de esgotar o estudo sobre o tema, é valiosa a lição de Luiz Alberto David Araujo [4], segundo o qual:
De acordo com o autor, a deficiência há
de ser entendida não apenas pela constatação de uma falha sensorial ou
motora, por exemplo, mas também pelo grau de dificuldade para a inclusão
e adaptação social desse indivíduo.
Independentemente do conceito que se pretenda adotar, é certo que as pessoas com deficiência no Brasil - e no resto do mundo - enfrentam diversas formas de segregação da sociedade. E, no campo da mediação de conflitos, não é diferente.
O grande destaque dado atualmente à mediação tem diversas origens, dentre elas, o esforço legislativo na positivação de normas a respeito do tema. Nesse sentido, e apenas para exemplificar, temos o Código de Processo Civil de 2015 [5] e a própria Lei da Mediação [6].
Ocorre que, seguindo o padrão de políticas públicas do Estado, o implemento da mediação foi traçado com base em características da maioria da população que, nesse contexto, traduz-se em sujeitos sem qualquer deficiência. Tal premissa ocasiona a falta de representatividade das pessoas com deficiência em praticamente todos os projetos e expectativas que envolvem a mediação de conflitos. E a consequência disso é previsível: mais uma forma de segregação desses indivíduos da sociedade.
Quando verificamos que um dos principais norteadores da mediação é a isonomia entre as partes (art. 2º da Lei da Mediação), o problema torna-se ainda mais evidente. Se os espaços voltados à prática da mediação apresentam barreiras arquitetônicas, ou ainda, se tais ambientes não dispõem de mediadores preparados para o atendimento dessas pessoas, é muito difícil contemplar eventual isonomia.
Não é demais lembrar que além dos obstáculos arquitetônicos, urbanísticos ou de transportes, a acessibilidade inclui o combate às barreiras na comunicação e na informação, de modo que não haja “qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens e de informações por intermédio de sistemas de comunicação e de tecnologia da informação" [7].
Nesse ponto, outro princípio merece a nossa atenção: o princípio da oralidade, previsto tanto no Código de Processo Civil de 2015 quanto na Lei de Mediação [8].
Segundo tal princípio, os atos praticados nos encontros de mediação devem ser, preferencialmente, na forma oral, de modo que apenas disposições essenciais sejam reduzidas à forma escrita.
No entanto, tal prioridade na oralidade não pode ignorar o contexto fático em que a mediação é realizada, tampouco as necessidades das pessoas envolvidas nela, como é o caso das pessoas com deficiência na fala ou na audição, que precisam de intérpretes de Libras ou mesmo se expressar por meio da escrita.
Como bem observam Fernando Gama de Miranda Netto e Irineu Carvalho de Oliveira Soares [9]:
Em outras palavras, toda e qualquer
entrave à participação desses sujeitos em encontros de mediação deve ser
objeto de atenção por parte do governo e da sociedade. Esse cuidado
deve se refletir em participação ativa da União, Estados, Distrito
Federal e Municípios [10], uma vez que a proteção das pessoas com
deficiência consiste em norma programática da Constituição Federal, além
de dever ético atrelado a conscientização acerca de realidades
coexistentes às nossas.
A pessoa com deficiência tem direito à acessibilidade para poder realizar todas as suas atividades livremente, sem ser objeto de tratamentos diferenciados ou destoantes da maioria. Como todo ser humano, querem apenas integrar-se socialmente para, assim, viverem sem o paternalismo ou o assistencialismo característicos de determinadas políticas da atualidade. À todos os envolvidos, direta ou indiretamente, com a mediação de conflitos, fica a reflexão: ainda há muito o que ser feito nessa área. E, nesse momento, humildade e empatia para reconhecer as dificuldades do outro é fundamental.
Fernanda Mayumi Kobayashi é advogada, graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), pós graduada em Mediação pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) e membro da Comissão de Mediação da OAB/SP (116ª Subseção Jabaquara/Saúde).
Advogada
A questão da deficiência no ser humano é tema presente há muito tempo na história da humanidade. O Estado, como responsável pelo tratamento adequado das pessoas com deficiência, tem o dever de implementar medidas de proteção que viabilizem o exercício de direitos e liberdades fundamentais por parte desses sujeitos. A sociedade, igualmente, tem o seu papel: dedicar mais atenção e respeito às problemáticas que envolvem a vida de uma pessoa com deficiência em nosso País.
Cientes dessa responsabilidade, é hora de levantar algumas considerações a respeito da inclusão das pessoas com deficiência na denominada mediação de conflitos. É possível considerar os espaços voltados à essa prática realmente acessíveis? Os mediadores estão preparados para lidar com esse público no dia a dia da profissão? E quais seriam as medidas necessárias para a inclusão efetiva desses sujeitos no novo cenário da mediação?
Desde já, é possível destacar ao menos duas perspectivas pelas quais o tema pode ser abordado: por um lado, os desafios no acesso de pessoas com deficiência à formação profissional para que atuem como mediadores e, por outro, as dificuldades dessas pessoas quando inseridas na posição de mediados, isto é, na condição de sujeitos que recorrem à mediação para o tratamento de seus conflitos.
Para fins da presente análise, e não deixando de reconhecer imprescindível o debate sobre todas as faces do problema, serão priorizados os desafios da segunda abordagem, isto é, daqueles decorrentes de situações em que um ou mais mediados são pessoas com deficiência.
Existem diversos critérios para definir o conceito de pessoa com deficiência. Em termos etimológicos, o dicionário [1] traz algumas definições. Já o Estatuto da Pessoa com Deficiência [2], em seu art. 2º, considera pessoa com deficiência “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”. Vale notar que tal definição equipara-se à prevista na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pelo Decreto n. 6949/09 [3].
Sem a pretensão de esgotar o estudo sobre o tema, é valiosa a lição de Luiz Alberto David Araujo [4], segundo o qual:
"O que
define a pessoa com deficiência não é falta de um membro nem a visão ou
audição reduzidas. O que caracteriza a pessoa com deficiência é a
dificuldade de se relacionar, de se integrar na sociedade, de estar
incluído socialmente. O grau de dificuldade para a inclusão social é que
definirá quem é ou não pessoa com deficiência"
Independentemente do conceito que se pretenda adotar, é certo que as pessoas com deficiência no Brasil - e no resto do mundo - enfrentam diversas formas de segregação da sociedade. E, no campo da mediação de conflitos, não é diferente.
O grande destaque dado atualmente à mediação tem diversas origens, dentre elas, o esforço legislativo na positivação de normas a respeito do tema. Nesse sentido, e apenas para exemplificar, temos o Código de Processo Civil de 2015 [5] e a própria Lei da Mediação [6].
Ocorre que, seguindo o padrão de políticas públicas do Estado, o implemento da mediação foi traçado com base em características da maioria da população que, nesse contexto, traduz-se em sujeitos sem qualquer deficiência. Tal premissa ocasiona a falta de representatividade das pessoas com deficiência em praticamente todos os projetos e expectativas que envolvem a mediação de conflitos. E a consequência disso é previsível: mais uma forma de segregação desses indivíduos da sociedade.
Quando verificamos que um dos principais norteadores da mediação é a isonomia entre as partes (art. 2º da Lei da Mediação), o problema torna-se ainda mais evidente. Se os espaços voltados à prática da mediação apresentam barreiras arquitetônicas, ou ainda, se tais ambientes não dispõem de mediadores preparados para o atendimento dessas pessoas, é muito difícil contemplar eventual isonomia.
Não é demais lembrar que além dos obstáculos arquitetônicos, urbanísticos ou de transportes, a acessibilidade inclui o combate às barreiras na comunicação e na informação, de modo que não haja “qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens e de informações por intermédio de sistemas de comunicação e de tecnologia da informação" [7].
Nesse ponto, outro princípio merece a nossa atenção: o princípio da oralidade, previsto tanto no Código de Processo Civil de 2015 quanto na Lei de Mediação [8].
Segundo tal princípio, os atos praticados nos encontros de mediação devem ser, preferencialmente, na forma oral, de modo que apenas disposições essenciais sejam reduzidas à forma escrita.
No entanto, tal prioridade na oralidade não pode ignorar o contexto fático em que a mediação é realizada, tampouco as necessidades das pessoas envolvidas nela, como é o caso das pessoas com deficiência na fala ou na audição, que precisam de intérpretes de Libras ou mesmo se expressar por meio da escrita.
Como bem observam Fernando Gama de Miranda Netto e Irineu Carvalho de Oliveira Soares [9]:
“Nesse caso,
o Centro de Mediação responsável deve estar adaptado a essas pessoas,
fornecendo a acessibilidade necessária a sua interação no processo
mediacional, ou seja, não pode vetar o uso de outros meios ou o seu uso
integrado com a forma de comunicação oral. É imperativo, portanto, que
existam mediadores que conheçam a Língua Brasileira dos Sinais. Afinal, é
a mediação que deve se adaptar às pessoas, e não o contrário."
A pessoa com deficiência tem direito à acessibilidade para poder realizar todas as suas atividades livremente, sem ser objeto de tratamentos diferenciados ou destoantes da maioria. Como todo ser humano, querem apenas integrar-se socialmente para, assim, viverem sem o paternalismo ou o assistencialismo característicos de determinadas políticas da atualidade. À todos os envolvidos, direta ou indiretamente, com a mediação de conflitos, fica a reflexão: ainda há muito o que ser feito nessa área. E, nesse momento, humildade e empatia para reconhecer as dificuldades do outro é fundamental.
Fernanda Mayumi Kobayashi é advogada, graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), pós graduada em Mediação pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) e membro da Comissão de Mediação da OAB/SP (116ª Subseção Jabaquara/Saúde).
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