segunda-feira, 21 de maio de 2018

A cultura capacitista e a mídia


Um conceito que sempre esteve à minha volta, antes mesmo de eu saber que ele tinha nome, é o capacitismo. Essa palavra significa para as pessoas com deficiência o mesmo que o racismo para as pessoas negras, e o machismo para as mulheres. Capacitismo é a crença social de que o indivíduo com deficiência é incompleto, diferente e menos apto para executar qualquer função ou gerir a própria vida.

O capacitismo anda de mãos dadas com a eugenia. Aceitar a visão capacitista é acreditar que exista um único padrão de corpo humano. É querer usar o ideal utópico de perfeição para classificar as pessoas e definir o valor de cada um segundo características físicas, sensoriais ou intelectuais tidas como “boas, belas e perfeitas”. É desconsiderar a arbitrariedade do uso desses adjetivos e oprimir a maioria social em função da ideologia criada por uma minoria.

Existe um silenciamento dessa opressão causada pelo capacitismo. Procura-se justifica-lo constantemente por meio do paternalismo dirigido às pessoas com deficiência. Vistas como frágeis, inocentes e vulneráveis, essas pessoas necessitariam obrigatoriamente da proteção e tutela social. Por trás dessa noção vista como “benevolente e caridosa”, está a afirmação da descrença na igualdade e na capacidade de vida independente do indivíduo com deficiência.


O que significa o conceito de igualdade nesse caso? É a promoção da acessibilidade e da inclusão. Esses dois últimos termos também sofrem deturpação na cultura do capacitismo. Tornar acessível e incluir não são favores nem obras de caridade. São direitos! Direitos para se eliminar as barreiras físicas, comunicacionais, atitudinais, entre outras, do ambiente e da sociedade para torna-los lugares plenamente acessíveis, desfrutáveis e com igualdade de oportunidades para todos.


O padrão do corpo humano perfeito pregado pela cultura do capacitismo não é, nem de longe, universal. Quem é o ser humano para ditar leis nas obras da natureza? Se todos nós existimos nesse mundo, é porque temos os mesmos direitos e a mesma dignidade enquanto pessoas. O valor do nosso todo não pode ser medido pela soma das partes, porque ele é imensurável e transcendental.

A sociedade que discrimina pessoas com deficiência sai prejudicada também com essas atitudes, porque está perdendo o incrível potencial da diversidade humana. A deficiência, por si só, não é algo negativo ou danoso, pois é apenas mais uma das inúmeras características dos seres humanos. O que é prejudicial de fato são as barreiras arquitetônicas, comunicacionais e atitudinais presentes nas sociedades que não valorizam e respeitam as diferenças.


A cultura do capacitismo muitas vezes é tão influente que consegue fazer com que as próprias pessoas com deficiência duvidem de si mesmas e reproduzam tais preconceitos, antes de terem o esclarecimento da opressão a que estão submetidas. A cultura capacitista é também tão hipócrita que parabeniza e taxa como “exemplos de superação” indivíduos com deficiência que vencem as dificuldades criadas pela mesma sociedade que os oprime e os classifica como desiguais.


Ser capacitista também é achar que ter ou adquirir uma deficiência é um tipo de castigo natural ou divino. Igualmente, ser capacitista é pensar que as deficiências só trazem infelicidades. É duvidar que uma pessoa consiga cumprir alguma tarefa que tenha ou não a ver com a deficiência dela. É achar também que um tipo de deficiência seja melhor ou pior do que outro.


O capacitismo na mídia

A mídia, como agente de construção e divulgação das identidades sociais, tem uma grande parcela de contribuição na cultura do capacitismo. Inúmeros são os casos de reprodução de estereótipos e de desinformação que podemos encontrar ainda hoje nos produtos jornalísticos veiculados. Ás vezes, uma única palavra ou expressão, encaixadas em determinado lugar ou contexto de uma frase, já são o suficiente para reforçar a ideologia capacitista. Muitas vezes isso é feito de maneira inconsciente pelo profissional jornalista ou até pelos entrevistados, pelo fato deles próprios estarem inseridos na sociedade que reproduz tais estereótipos.


Utilizando como exemplos algumas reportagens do meio on-line, vemos também a presença do sensacionalismo, além do reforçamento de mitos e da desinformação, na abordagem jornalística sobre a temática das deficiências. Na matéria “Mãe cega cuida de dois filhos e dá exemplo de superação: ‘Até o lado mau tem seu lado bom’”, a perpetuação de estereótipos começa já pelo título, ao se fazer a associação da deficiência com o adjetivo mau, proferindo cargas semânticas extremamente negativas para tais condições. Isso abre brechas para o preconceito, pois esses sentidos podem se estender da condição para o indivíduo que a possui.

A reportagem, com tom de sensacionalismo, continua reproduzindo estereótipos em seu texto. “[Nome de seus filhos] não perdem nada tendo uma mãe deficiente”. Essa frase carrega uma das máximas da ideologia capacitista ao supor, implicitamente, que quem convive com uma pessoa com deficiência perderia “algo”, que tal pessoa não seria capaz de suprir suas necessidades sociais por causa da deficiência. Se o objetivo da reportagem é, de fato, afirmar que essa suposição é uma inverdade (como visto pelo advérbio “não”, antes da expressão “perder nada”), deveria ter sido explicado o conceito do capacitismo primeiramente, trazendo à tona tais crenças preconceituosas para, em seguida, desmitifica-las, e não simplesmente assumi-las como uma antiga verdade e depois negá-la de forma simples.

Já em outra reportagem, “Com 84 centímetros, [nome da entrevistada] quer conquistar o mundo”, observa-se uma contradição no começo do texto. “[Ela] Tem uma tatuagem no ombro, é apaixonada por animais e não perde um episódio de Game of Thrones. A história de [nome da entrevistada] poderia ser a de muitos outros jovens da capital. Mas não é por um único motivo: [citação da força da moça e de suas deficiências]”. Ora, o fato dessa moça ter deficiências anularia suas outras características de modo a torna-la diferente dos demais jovens, mesmo fazendo as atividades que eles fazem?

Mais um exemplo da cultura capacitista. Com o título de “Sanfoneira [nome da entrevistada] difunde o forró com exemplo de superação”, a matéria começa assim: “[Nome da entrevistada] está de bem com a vida. Mesmo tendo perdido o olho e a perna esquerdos, ainda na infância, a acordeonista de 74 anos espalha alegria por onde passa […]”. Então, supõe-se que as pessoas com deficiência sempre são tristes e inconformadas com as suas condições? A associação entre deficiência e fatalidade social é claramente um dos pilares do capacitismo.

Agora, um exemplo de desinformação midiática acerca das deficiências. No começo de uma reportagem intitulada “Na ponta dos dedos”, sobre a famosa escritora e ativista surdo-cega Helen Keller, encontra-se a afirmação de que a moça, por ter ficado surda, também adquiriu mudez. “[…] vítima de uma moléstia maldiagnosticada (muito provavelmente escarlatina), Helen ficou cega, surda e, por consequência, muda […]”.


Por que essa informação está errada? Porque a surdez, por si só, não traz impedimentos biológicos ou fisiológicos para a expressão oral. Muitos surdos também conhecem e utilizam palavras da língua materna de seu país para se comunicarem com os ouvintes que não sabem línguas de sinais. Se uma pessoa surda não fala, é porque ela não foi alfabetizada no método oral de reabilitação auditiva. E Helen Keller, a protagonista sobre a qual a reportagem citada acima é construída, aprendeu sim a se comunicar oralmente, em mais de um idioma (francês, latim e alemão), e também por língua de sinais e outros métodos (fontes dessas informaçõesaqui e aqui).


Ou seja, conclui-se que ainda há um desconhecimento midiático muito grande acerca da temática das deficiências, além de várias produções jornalísticas na área estarem imersas na cultura do capacitismo. Precisa-se de um preparo maior para os profissionais atuantes na mídia lidarem com esse tema. Os debates sobre a questão da inclusão e da acessibilidade devem ser trazidos para o ambiente de formação universitária e em todos os espaços públicos contemporâneos. Afinal, as deficiências são uma parte da diversidade humana e precisam ser conhecidas e respeitadas por todos em suas realidades, e não como frutos da cultura capacitista.





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