Por Maria Teresa Eglér Mantoan é Doutora em Educação,
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas –
UNICAMP e Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e
Diferenças – LEPED/ Unicamp.
Sobre o direito à diferença na igualdade de direitos
Em sua aproximação inicial, a inclusão escolar foi
entendida sumariamente como inserção de alunos com deficiência, que
frequentavam classes e escolas especiais, nas turmas das escolas comuns.
Conquanto ainda muitos a concebam assim, estamos chegando pouco a pouco à
compreensão de seu mote: garantir o
direito à diferença na igualdade de direitos à educação.
A educação brasileira, na Constituição de 1988, tem como
princípio a observância do direito incondicional e indisponível de todos os
alunos à educação e a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com
Deficiência de 2007, assimilada ao nosso Ordenamento Jurídico pelo Decreto
Legislativo nº 186/2008, corrobora esse direito.
A garantia do acesso e permanência de todos à escola
comum é absolutamente necessária, mas insuficiente para que a educação
inclusiva se efetive em nossas redes de ensino. O direito à diferença é
determinante para que sejam cumpridas as exigências dessa educação, propiciando
a participação dos alunos no processo escolar geral, na medida das capacidades
de cada um.
Quando nos referimos à igualdade de direitos à educação,
estamos falando de direitos iguais e não de alunos igualados e reduzidos a uma
identidade que lhes é atribuída e definida de fora, formando conjuntos
arbitrariamente compostos: bons e maus alunos, repetentes, bem sucedidos,
normais, especiais.
Quando nos referimos ao direito à diferença, estamos
tratando da diferença entre os alunos, que, mesmo passíveis de serem agrupados
por uma semelhança qualquer, continuam diferentes entre si, dado que a
diferença tem o seu sentido adiado, infinitamente.
Diferença e identidades na escola
A inclusão e suas práticas giram em torno de uma questão
de fundo: a produção da identidade e da diferença. Coloca em xeque a
estabilidade da identidade, usualmente compreendida como algo fixado, imutável;
questiona a diferença, como uma referência pela qual alguns grupos discutem
seus traços a partir de concepções de “comunidade”, enfatizando as necessidades
comuns desses grupos.
Os sentidos da identidade e da diferença nos fazem cair
em muitas armadilhas, obrigando-nos a caminhar com cuidado para evitar suas
insidiosas ciladas da inclusão.
A inclusão implica pedagogicamente na consideração da
diferença dos alunos, em processos educacionais iguais para todos.
A ambivalência dessa situação assemelha-se ao andar no
fio da navalha. Exige um equilíbrio
dinâmico dos que atuam nas escolas para que possam atender plenamente o que a
inclusão prescreve como prática pedagógica, ou melhor, para não cair em
diferenciações que excluem e nem pender para a igualdade, que descaracteriza o
que é peculiar a cada aluno.
A igualdade gera identidades naturalizadas, estáveis,
fixadas nas pessoas ou em grupos e elas têm sido úteis para que a escola defina
aparatos pedagógicos e estabeleça em sua organização critérios e perfis
educacionais idealizados.
A diferença não cabe nesses perfis engessados, nas
classificações e identificações que encerram os alunos mais adiantados, por
exemplo, em uma dada turma, os mais atrasados, em outra. Os alunos são sujeitos
únicos, singulares, heterogêneos, que não se encaixam plenamente nelas.
A diferença e as identidades são tão instáveis quanto o
processo de significação do qual dependem. Elas têm sentidos incompletos e,
sendo a cara e coroa da mesma moeda, ambas estão sujeitas a relações de poder,
entre as quais as exercidas na escola.
Diferenciar para incluir ou para excluir? A diferença
“entre”
Na lida com os professores e pais de alunos com
deficiência é comum chegarem até mim casos em que uma criança, um jovem é
barrado no acesso à escola, em razão de sua diferença. Tal motivo tem sido
usado para justificar o despreparo dos professores, das edificações,
mobiliários, ambiente físico das escolas, concebidos para os que se enquadram
em um padrão, os que não exigem mudanças no que está estabelecido e aceito para
alguns e não para todos os alunos.
O fato é que as pessoas não se reduzem a modelos
identitários, estabelecidos arbitrariamente e produzidos pela dificuldade de
lidarmos com o caráter emergente, imanente e inacabado do sujeito em todas as
fases de sua existência. As diferenças definidas por agrupamentos constituídos pela
semelhança de um ou mais atributos tendem a se tornarem permanentes, reificadas
descartando o caráter mutante da diferença e sua capacidade de escapar a toda
convenção possível.
Quando se abstrai a diferença, para se chegar a um
sujeito universal, a inclusão perde o seu sentido. Conceber e tratar as pessoas
igualmente esconde suas especificidades. Porém, enfatizar suas diferenças, pode
excluí-las do mesmo modo!
Como, então, encarar o processo ardiloso de
(des)equilibração impostos pela inclusão? Como ir em frente, sem cair nas suas
armadilhas?
Distinguir diferença de diversidade é um primeiro passo.
Não se trata de um jogo de palavras, mas de se reconhecer a natureza de ambas.
A diferença tem natureza multiplicativa e não se reduz à identidade - a diferença
vai diferindo e se reproduzindo. A diversidade tem a ver com o idêntico e,
portanto, com o existente, o imutável. Identidade e diferença não se compõem.
Ademais, estamos habituados às formas de representação da
diferença, que são resultantes de comparações e de contrastes externos. As
peculiaridades definem a pessoa e estão sujeitas a diferenciações contínuas,
tanto interna, como externamente. Para Burbules (1997), um estudioso do tema, a
forma usual de se pensar a diferença é estabelecendo diferenças entre, que
resultam de oposições binárias e nos remetem ao idêntico, ao existente, à ideia
de diversidade.
Os modos de subjetivação nos aprisionam na representação
pela qual o outro nos define. Uma identidade enunciada resulta do poder de
assujeitamento de quem nos nomeia. Segundo Guattari (1976), a produção
subjetiva, ou melhor, a fixação em uma identidade atribuída de fora torna a
pessoa tributária de verdades universais, que a fazem perder a sua
singularidade e submeter-se à exclusão. Por se apoiarem no sentido da diferença
entre e em discursos científicos que instituem a identidade pela definição de
desvios e da normalidade, grande parte de nossas políticas públicas confirmam o
projeto igualitarista e universalista da Modernidade. Embora já tenhamos
avançado muito, desconstruir o sentido de diferença entre e desconsiderar a
identidade idealizada e fixa do indivíduo modelar em nossos cenários sociais é
ainda uma gigantesca tarefa.
A diferença entre está subjacente a todos os entraves às
mudanças propostas pela inclusão. Velada ou explicitamente, ao fazermos
comparações, fixamos padrões desejáveis, definimos classes e subclasses com
base em atributos que não dão conta das pessoas por completo, excluindo-as por
fugirem à média e/ou à norma estabelecida.
O poder que subjaz a essas enunciações estabelece, pela
via da comparação, os processos de diferenciação para excluir, que limitam o
direito de participação social e o gozo do direito de decidir e de opinar de
determinadas pessoas e populações. Essa tendência se opõe à inclusão e ainda é
a mais frequente.
A diferenciação para incluir como saída para se enfrentar
as ciladas da inclusão está se impondo aos poucos e cada vez mais se destacando
e promovendo a inclusão total. Tal processo de diferenciação implica a quebra
de barreiras físicas, atitudinais, comunicacionais, que impedem algumas pessoas
em certas situações e circunstâncias de conviverem, cooperarem, estarem com
todos, participando, compartilhando com os demais da vida social, escolar,
familiar, laboral, como sujeitos de direito e de deveres comuns a todos.
Ao diferenciarmos para incluir, estamos reconhecendo o
sentido multiplicativo e incomensurável da diferença, que vaza e não permite
contenções, porque está se diferenciando sempre, interna e externamente, em
cada sujeito. Essa forma de diferenciação, na concepção de Burbules e de outros
autores voltados para o estudo da diferença, é fluída e bem-vinda, porque não
celebra, aceita, nivela, mas questiona a diferença!
Em uma palavra, enfrentar as ciladas da inclusão é reagir
contra os valores da sociedade dominante e rejeitar o pluralismo, entendido
como uma incorporação da diferença pela mera aceitação do outro, sem conflitos,
sem confronto. A inclusão desestabiliza a diferença tolerada e coloca em cheque
a sua produção social, como um valor negativo, discriminador e marginalizante.
Os que se envolvem na defesa dos preceitos inclusivos
precisam estar atentos ao sentido da diferença como padrão produzido pelos que
procuram se diferenciar cada vez mais para manter a estabilidade de sua
identificação ou diferença. Aí mora o perigo.
Há muitas formas de se contribuir para que se confirme o
sentido desestabilizante da diferença, no qual a inclusão se fundamenta, para
que continuemos a progredir na direção de uma sociedade verdadeiramente
democrática.
Deslizes que possam ocorrer no entendimento do direito à
diferença, com base no que esta significa e durante os processos de diferenciação,
criam problemas e caminhos equivocados para os que buscam construir uma
pedagogia alinhada aos preceitos inclusivos.
Os processos de diferenciação precisam ser cuidadosamente
observados, para que, na intenção de acertar, as escolas acabem se perdendo e
caindo em armadilhas difíceis de escapar.
Diferenciar para incluir é possível, quando a aluno ou
beneficiário de uma ação afirmativa qualquer estiver no gozo do direito de
escolha ou não dessa diferenciação. Um exemplo desse direito é o aluno que pode
optar pelo lugar que ocupará em uma sala de aula, quando usa cadeira de rodas.
Ele não é obrigado a se sujeitar à imposição de sentar-se sempre à frente de
todos, em um lugar especial, definido por especialistas, se sua turma de
colegas está localizada mais ao fundo.
Um aluno cego ou com baixa visão, que é o único a usar um
computador na sala de aula não está sendo diferenciado e excluído dos seus
colegas, se o computador o faz participar das aulas com autonomia e
independência, por meio de um leitor de tela, por exemplo. Ele também tem o
direito de estudar os conteúdos escolares em Braille, ampliados na fonte, em
MP3 e essas diferenciações são aceitáveis, porque não são recursos que o
discriminarão em sala de aula.
Nos exemplos de diferenciações citados, que envolvem
inclusão nos processos educativos, estão resguardados: o direito à igualdade –
estudar e compartilhar conhecimentos com os colegas de turma e o direito à
diferença - que assegura ao aluno equipamentos, apoio da tecnologia na sala de
aula e outros suportes e que lhe faculta a liberdade de escolhê-los, de modo
que se sinta melhor assistido para participar das aulas e aprender.
Há alunos que são diferenciados por participarem de
programas de reforço escolar e outros, cujos estudos são realizados de acordo
com atividades, conteúdos, avaliações adaptados e limitados, que professores e
especialistas lhes prescrevem, na ilusão de serem capazes de definir e
controlar o aprendizado e/ou para não se decepcionarem diante do que ensinam.
Há mesmo intervenções que são realizadas por professores de educação especial,
que acontecem na sala de aula, durante as atividades diárias e que também
diferenciam alunos, excluindo-os da turma, mesmo temporariamente.
Muitos poderão entender que essas diferenciações são para
incluir, pois do contrário os alunos seriam relegados pela escola, por falta de
atenção às suas necessidades. Ocorre que tais programas, por restringirem
conteúdos e atividades escolares, são considerados discriminatórios e
excludentes e atentam para a liberdade de o aluno aceitá-las ou não, no período
de aula.
Na boa vontade de “customizar” o processo educativo, de
modo que se ajuste ao feitio de cada um, a exclusão se manifesta, embora
estejamos pretendendo o contrário.
A escola tem poderes para diferenciar e para identificar
os alunos, submetendo-os a mecanismos de inclusão e de exclusão educacional.
Uma pedagogia da diferença
A tendência de diferenciar o ensino escolar comum para
certos grupos de alunos ou mesmo para um único aluno é uma prática que não
corresponde a uma educação verdadeiramente inclusiva.
Os aparatos pedagógicos que visam: tornar menor ou maior
o grau de dificuldade do ensino nas salas de aula; associar exclusivamente
algumas atividades e níveis de dificuldade/desempenho a certos alunos; realizar
a escolarização de alguns, seguindo uma programação à parte, mesmo que estejam
gozando igual direito de estar com todos nas salas de aulas do ensino comum,
eles continuam sendo excludentes e, portanto, descumprindo o direito à
diferença.
Para que uma pedagogia da inclusão seja exercida nas
escolas, ela deverá acolher a diferença de todos os alunos como próprias da
natureza multiplicativa da diferença, que se reproduzem, não se repetem, se
ampliam e não se reduzem ao idêntico e existente.
Esse acolhimento impede que o ensino e aprendizagem
escolares de alguns alunos sejam restritas a: currículos adaptados, objetivos
educacionais reduzidos, critérios de avaliação abrandados, terminalidade
específica para certificação escolar, facilitação de atividades, sempre levando
em conta o que o nosso poder de decidir sobre o que nossos alunos têm ou não
capacidade de aprender.
Tais procedimentos diferenciam para excluir e são
próprios de um ensino diferenciado que chega ao nível de sua individualização,
ou seja, a ser proposto sob medida para cada um!
A pedagogia a que queremos chegar, não seria jamais
concebida como uma pedagogia que congela identidades e que em função dessa
estabilidade construída, estabelece um campo específico, uma fórmula padrão
para atuar com cada uma delas. São típicas desse congelamento as pedagogias
para alunos com deficiência intelectual, com surdez, com problemas de
linguagem, em que a “customização” do ensino considera o cliente como um sujeito
abstrato, desencarnado para os quais se destinam procedimentos universalizados,
generalizados.
A esta maneira de fazer educação escolar comum e especial
podermos chamar de “pedagogia da diversidade”, em que a diferença é redutível à
identidade, a um dado cultural, à natureza.
Na linha da diversidade, estão as pedagogias das etnias,
religiões, gênero, minorias, que têm um caráter estático e que celebram
identidades estáveis, prontas, que se impõem como representativas de grupos que
buscam entre outros objetivos, a afirmação social.
Essas pedagogias diferem da pedagogia da diferença,
construída no entendimento pleno da inclusão, destinada a alunos que não se
repetem e para os quais é impensável sugerir qualquer “customização” educativa.
No âmbito dessa pedagogia, que é inclusiva por natureza,
é o aluno que introduz a cunha da diferença ao ensino e à aprendizagem,
trazendo para a sala de aula mudanças substanciais, que atingem o papel do
professor, sugerindo moderação: na sua
função explicativa e na de sancionar acertos e erros e deixando espaço para que
a criatividade e as descobertas se manifestem a partir das experiências e
buscas do aluno.
A expressão livre das ideias, sentimentos,
posicionamentos desloca o poder que identifica e reduz as diferenças a níveis
de compreensão, desempenho e acompanhamento do ensino, segundo normas que
permitem distinguir a verdade no que parece ser um erro.
O exercício propiciado pelo ensino em que a autonomia
intelectual revela a capacidade de tomada de decisão do aluno, escolhendo por
si só suas tarefas e o modo de desenvolvê-las, de acordo com suas capacidades,
interesses corresponde ao que almejamos atingir em uma pedagogia alinhada à
inclusão.
O trabalho colaborativo, próprio da pedagogia da
diferença organiza-se em redes, onde o saber circula horizontalmente, sem
hierarquia. Todos têm o que ensinar e aprender em um ambiente escolar
caracterizado pela diferença de capacidades, as quais circulam e diluem a
autoria do conhecimento conferida a um único aluno.
Os conteúdos escolares disponibilizados para todos, a
partir de atividades diversificadas e de livre escolha, que não foram
predefinidas para um grupo ou para um aluno em especial, oferecem aos
professores indícios sobre as capacidades dos alunos e sobre o que desejam
conhecer, e torna-os sujeitos ativos do conhecimento.
Muito ainda poderíamos dizer de uma pedagogia da
diferença e de suas práticas e propósitos inclusivos, mas este não é o momento.
E finalmente, em resposta ao que seria uma pedagogia que
não cai nas armadilhas da diferença, propomos que a incumbência de “customizar”
seja do aluno e não do professor.
Ao colocar em ação suas capacidades, diante de um
conteúdo que pode explorar, sem o controle externo da verdade, o aluno
compreenderá o novo nas “suas medidas” e confortavelmente transitará pelos
caminhos que traçou para aprender.
Uma sociedade inclusiva é possível e está a caminho. Os avanços
nessa direção são evidentes e resultantes de conquistas que os tornam
irreversíveis.
Nosso compromisso como educadores do século 21 reveste-se
da responsabilidade de concretizar uma pedagogia que responda aos anseios e
necessidades deste novo tempo.
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