terça-feira, 23 de dezembro de 2014

TV-Brincadeirantes.Há 46 anos na UTI, paciente cria desenho animado


As brincadeiras de sete crianças com paralisia infantil, que passaram a infância internadas numa UTI do Hospital das Clínicas de São Paulo, viraram mote para uma série de desenhos, criada pelo líder da turma.
Paulo Henrique Machado, 47, que vive ligado a um respirador artificial no Hospital das Clínicas desde um ano de idade, é mentor e roteirista da animação “Brincadeirantes”, concluída nesta semana.
O episódio-piloto, com dez minutos, foi possível graças a um financiamento coletivo que arrecadou R$ 120 mil. Um total de 1.612 doadores colaboraram com a empreitada.


“Pareço criança. Já assisti umas 200 vezes e não me canso de rever. Ficou exatamente do jeito que eu sonhei. A caracterização dos personagens, a trilha, tudo. Foi um processo dolorido, por me fazer recordar dos amigos que já se foram, mas, ao mesmo tempo, desafiador”, conta.

Dos amigos que aparecem no primeiro e nos futuros episódios, apenas ele e Léca (Eliana Zagui, sua melhor amiga e vizinha de cama na UTI do HC) sobreviveram.
Deitados no leito, ambos concluíram o ensino médio. Paulo fez cursos de computação gráfica e de roteiro pelo Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial).

É fã de animações, como as do estúdio britânico Aardman Animations (especializado em stop-motion, técnica de animação em que modelos de massinha são fotografados quadro a quatro), que tem personagens deficientes. Pela internet, fez amizade com Carlos Saldanha, diretor de “A Era do Gelo” (2002), que já o visitou no HC.

Ao roteirizar suas histórias e as dos amigos, a ideia de Paulo foi combater preconceitos. “Apesar das limitações, a gente se divertia. Da janela do quarto, soltávamos pipa. O hospital foi o meu jardim da infância e continua sendo meu lar.”
Mesmo com sistema respiratório paralisado pela pólio, Paulo, Pedro e Anderson tinham movimentação nos braços. Já Eliana, Claudia e Tânia, não. Desenhavam e escreviam com boca.
Na animação, Paulo relata uma ida ao Playcenter em que tenta brincar, mas, penalizados com a sua deficiência, funcionários das barracas lhe dão prêmios, sem que ele os dispute. “Não quero brinquedo, quero é brincar”, queixa-se Léco, seu personagem.

Na vida real, Paulo se diverte com filmes e jogos no computador. “Todos os dias, quando acordo, olho pra cama da Eliana e digo: ‘Ainda bem que ainda estamos vivos’.” E como estão.
Eliana pinta quadros com a boca, escreve o segundo livro e se prepara para ver a primeira obra [“Pulmão de Aço”, Belaletra editora, de 2012] virar peça teatral. Ambos os projetos são para 2015.
Paulo tenta viabilizar parcerias para a exibição do seu programa-piloto e a criação de novos episódios. Sete roteiros e 22 argumentos já estão prontos.

O produtor e animador do programa, Bruno Saggese, professor de Paulo, diz que se surpreendeu com a vitalidade e o talento do aluno. “A gente pensa que UTI é lugar de tristeza, mas aqui é um mundo à parte.”
A ideia, segundo ele, é procurar TVs abertas e a cabo, além de empresas na internet que possam se interessar em abraçar o projeto.

Como a história de Paulo ganhou projeção internacional, há veículos estrangeiros que manifestaram interesse.
“Espero que seja apenas o começo de uma grande aventura. Meu sonho é produzir um longa metragem”, diz um sorridente Paulo, com os olhos vidrados na tela do computador, que exibe sua série pela 201ª vez.


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