terça-feira, 19 de junho de 2012

Acorda Amor...

Acorda amor
Que o bicho é brabo e não sossega
Se você corre o bicho pega
Se fica não sei não
Atenção
Não demora
Dia desses chega a sua hora
Não discuta à toa não reclame...
(Trecho da música Acorda Amor de Chico Buarque)

Por Manuela Dantas


Ultimamente, estive as voltas com as lembranças do período que morei em hospitais... Após o acidente que me deixou paraplégica, passei 2 meses internada no Hospital Memorial São José em Recife e em seguida mais 6 meses no Hospital Albert Einstein em São Paulo. Percebi que a despeito de todas as minhas impressões iniciais, acabei não só me adaptando, mas até gostando de estar no ambiente hospitalar, pois nele conheci grandes pessoas dentre pacientes, enfermeiros, médicos, técnicos e funcionários e pude evidenciar as atitudes de solidariedade mais sinceras até hoje...

Dentro de um hospital, estava numa ilha de acessibilidade, não tinha nenhuma barreira física as minhas peregrinações constantes pelo hospital, tinha acesso aos restaurantes, lojas, cafés... As pessoas eram amáveis, solidárias e todos compreendiam as minhas dificuldades e facilidades. Naquela redoma de vidro, cheguei a achar que o mundo era assim, acessível e não possuía barreiras físicas e atitudinais.

Qual o espanto ao sair empolgadíssima do hospital para uma vida nova e me deparar com a realidade de haverem pouquíssimos hotéis com quartos acessíveis em São Paulo e depois de ter que passar mais de 2 meses na lista de espera por um quarto acessível na maior metrópole brasileira, percorrer decepcionada o recinto e perceber imediatamente que o mesmo não era, realmente, acessível, pois existiam batentes, tapetes felpudos, armários altos, tudo dificultava meu acesso. Por fim, consegui um hotel, que após alguns ajustes, o quarto foi adaptado para a minha realidade a ali morei mais 4 meses, enquanto fazia diariamente a minha reabilitação física.

Confesso que sempre fui agitada e gostava de passear, conhecer novos lugares, conversar com os amigos e assim quis continuar seguindo a minha vida, após sair do ambiente hospitalar. Pois bem, para iniciar minhas peregrinações e aproveitar a liberdade enfim conquistada dos quartos hospitalares, quis utilizar os taxis acessíveis, porém São Paulo possuía uma frota de apenas 30 veículos para toda a cidade e o tempo de espera por esses taxis tendia ao infinito. Propus-me, então, a utilizar as calçadas para me mobilizar a locais próximos, como fazia anteriormente, mas existiam barreiras, buracos, ausência de rampas e as calçadas eram feitas de materiais que causavam turbulência.

Aos poucos, fui descobrindo que eu podia, como cidadã, intervir no processo de reparo e reconstrução das calçadas em São Paulo, por meio de denúncias, pela internet em site próprio para esse fim, sobre as condições de acessibilidade das calçadas à prefeitura de São Paulo e assim poderia haver vistoria, notificação e reparo das calçadas não acessíveis, pois em São Paulo há uma diretriz para execução das calçadas segundo a Norma Brasileira de Acessibilidade, a NBR 9050, que se chama “Projeto Passeio Livre” com instruções e referências que devem ser seguidas pelos responsáveis pelas calçadas, sejam públicos ou privados.

Deu certo! Menos de dois meses após a minha denúncia, a calçada que levava ao Shopping Morumbi estava restaurada, sem falar que é extremamente gratificante ver os nossos apelos justos aos órgãos competentes serem ouvidos e atendidos, eventos como esse renovam a nossa esperança de que existem razões para acreditar que o país caminha na direção certa.

Afinal, como diria o empresário e pensador Norberto Odebrecht: “Quem, neste mundo, deseja realizar alguma coisa, encontra um caminho; quem nada deseja realizar, encontra sempre uma desculpa.”.

Ademais, 1 ano após o meu acidente voltei para Recife com uma ilusão boa de que minha vida, na minha terra seria melhor, eu seguiria o meu caminho e poderia recuperar o tempo que eu imaginava perdido dentro de hospitais e centros de reabilitação.

Decerto que voltar ao Recife, já me dava aquele fortalecimento intuitivo gerado pelo lugar e pelas pessoas que você ama, mas considero que fugir da realidade nunca é a melhor opção, e na realidade de Recife não existem taxis acessíveis, os taxis existentes se negam a levar cadeirantes por mil “desculpas”, os ônibus “acessíveis” vivem com elevadores quebrados e os motoristas são mal treinados para auxiliar os passageiros com dificuldades de locomoção, as calçadas são inacessíveis, com buracos, tocos de árvores, fiteiros e tamanhos inadequados, as vagas de estacionamento destinadas aos deficientes nos shoppings, lojas, supermercados, parques, hospitais são constantemente ocupadas por não deficientes.

Aliás, foram divulgados no final de abril do presente ano os dados do levantamento feito pela Mobilize Brasil investigando as calçadas de 12 capitais brasileiras e Recife ficou com o quarto pior desempenho. A Mobilize Brasil, portal sobre mobilidade urbana sustentável, enumerou dificuldades que qualquer cidadão que circula pelas ruas do Recife conhece de perto. Buracos, falta de rampas de acesso, vias estreitas, iluminação precária foram alguns dos pontos considerados pela pesquisa para fazer o ranking nacional.

Lembrei, então, de ter lido no jornal do dia 10 de junho um protesto de um senhor indignado com a situação das calçadas do Recife, esse senhor queria, apenas, manter a liberdade de ir e vir sendo idoso, mas estava sendo impedido pela triste realidade de acessibilidade da cidade.

Pensei, também, que esse ano, sendo eleitoral, a questão da acessibilidade seria trazida a tona pelos políticos e pela sociedade pela sua importância e magnitude, já que estamos em um país que possui 24% de deficientes, segundo o IBGE, o equivalente a 45,6 milhões de pessoas, ou cerca de um quarto dos brasileiros. 

Porém, mesmo no assunto da mobilidade urbana, que de quando em vez permeia os debates políticos, econômicos e estratégicos da cidade, pouco se fala do nosso mais utilizado meio de transporte, ou seja, andar a pé usando as calçadas e de sua acessibilidade! 

Aliás, para entendermos melhor a importância desse assunto, vamos aos dados:

43,6% dos deslocamentos com distâncias superiores a 500m são feitos a pé e todos os demais tipos de deslocamentos (carro, ônibus, bicicleta, etc.) incluem trechos a pé independente da classe econômica envolvida (ANTP, 2002);
O IBGE (2010) aponta que 30% das viagens cotidianas no País são realizadas a pé, o que ressalta a importância das calçadas para a mobilidade urbana;
1/3 da população da Região Metropolitana do Recife (1,5 milhão de pessoas) se desloca a pé (Diário de Pernambuco, 20/10/2010);
O Brasil possui 24% de deficientes, segundo o IBGE (2010);
Pernambuco, segundo o IBGE possui a quarta maior taxa de deficientes do Brasil;
50 mil pessoas da região metropolitana de Recife têm deficiência física. No estado de Pernambuco chegam a ser de 500 mil pessoas (Fonte Superintendência Estadual de Apoio à Pessoa com Deficiência - Sead);

No Nordeste, 47,3% dos pedestres e ciclistas não se sentem respeitados (Sips, 2010);

Em levantamento feito pela Mobilize Brasil, Recife ficou com o quarto pior desempenho quanto à acessibilidade de suas calçadas, recebendo nota 4,95. 
Pela amplitude do problema e pelo direito constitucional de ir e vir de toda a população recifense e pernambucana, tenho a ousadia de sugerir aos “prefeituráveis” e a toda a sociedade a retomarem em suas pautas a discussão sobre acessibilidade, inclusão, mobilidade e calçadas acessíveis. 

Calçada acessível é, basicamente, aquela em que os espaços de uso comum, sejam eles da iniciativa privada ou pertencentes ao Poder Público podem ser utilizados com qualidade por qualquer indivíduo da sociedade, ou seja, usado com autonomia, segurança e equiparação de oportunidade (Ministério das Cidades, 2005).

Outrossim, temos uma necessidade urgente de adequação das nossas calçadas aos padrões internacionais de acessibilidade e à norma ABNT NBR 9050, já que as características físicas das calçadas podem se tornar verdadeiros obstáculos acabando por segregar os usuários com limitações físicas, deficientes, idosos e gestantes e sendo uma dura ferramenta de exclusão social.

Não posso negar que não ter liberdade de ir e vir é dentre as minhas novas condições impostas uma das que mais me entristece. Ter que disputar com carros nas ruas por não poder usar calçadas e ter que pegar um carro para ir até a esquina me deixa “pelas tabelas” e confesso que essa situação me torna cada vez mais refém da minha casa e do meu isolamento, apesar de, diga-se de passagem, detestar isolamento, mas querer preservar um pouco de minha tranquilidade de espírito.

Por fim, lendo o jornal do dia 16 de junho de 2012, vi notícias alentadoras. O estande de Pernambuco na Rio+20 trazia o projeto Pernambuco sem Barreiras que tem o objetivo de eliminar os obstáculos físicos e humanos ao aproveitamento dos atrativos, equipamentos e serviços turísticos oferecidos no Estado, como também os projetos Diagnóstico Acessível ( projeto que faz o levantamento das condições de acessibilidade de hotéis e pousadas), o projeto Pernambuco de Todas as Línguas (projeto que utiliza cartilhas informativas sobre a importância da inclusão social), o Programa Qualificação em Acessibilidade (projeto com palestras de sensibilização), Praia Acessível (projeto que possibilita que deficientes tenham acesso ao banho de mar), Projeto Rotas Acessíveis (projeto onde serão criados sete percursos acessíveis à Arena Pernambuco, local dos jogos, distribuídos nos municípios do Recife e de Olinda).

Insistindo em não deixar de ser otimista e vendo começarem a surgir projetos que pensem em acessibilidade e garantia do aumento da qualidade de vida para todos, findo esse artigo com uma frase de Gandhi que reflete a esperança e a confiança nos homens, na sociedade e nas suas cidades.

“Nunca perca a fé na humanidade, pois ela é como o oceano. Só porque existem algumas gotas de água suja nele, não quer dizer que esteja sujo por completo.”  (Gandhi)

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