Por Izabel Maior
Não pretendo atacar nem colocar lenha na fogueira armada
nas comissões da Câmara e do Senado por onde a votação do projeto de lei do
Plano Nacional da Educação – PNE se arrasta desde fins de 2010. Nessas arenas
temos grupos bem identificados e corre-se o risco de serem considerados
suficientes para o debate da Meta 4 do PNE. Estamos vivendo o momento de
definir para os próximos dez anos como universalizar o atendimento escolar para
a população de 4 a 17 anos. A minha leitura é que faltam atores nessa discussão.
Sinto-me desapontada ao assistir nossos representantes no
legislativo valendo-se de frases superficiais para expor, sem nenhuma
consistência, argumentos contra ou a favor da inclusão escolar das crianças e
adolescentes com deficiência e transtorno global do desenvolvimento. A respeito
das pessoas com altas habilidades ou superdotação, nem um pio. Voltarei a esse
ponto adiante.
Verdadeiramente, o que mais me incomoda é o fato de os
defensores do lema “Nada sobre nós sem nós” permanecerem calados enquanto a
educação inclusiva está em xeque.
Há 30 anos, todas as pessoas com deficiência seguiam o
caminho das escolas segregadas e adequadas para as suas limitações. As crianças
com deficiência física estudavam em escolas dentro dos centros de reabilitação,
durante seu longo período de pacientes internados. Após a alta, continuavam a
frequentar as classes das escolas especiais construídas para elas. Cito apenas
a ABBR, no Rio de Janeiro, e a AACD, em São Paulo. Sei que a experiência valeu
para muitos e supriu a ineficiência das poucas classes especiais da rede
pública. Dentro do mundo da reabilitação, essa era a possibilidade de
adquirirem conhecimento. Estou fazendo referência à realidade nos anos 50, 60 e
até 70. Surgiram líderes do movimento a partir desse modelo educacional que faz
parte da história.
As escolas especiais para alunos com deficiência física
desaparecerem após muita luta até que houvesse a mudança de percepção da
sociedade acerca dessas pessoas. Não foram as pessoas com deficiência que
deixaram de ter impedimentos, tais como falta de movimento e de coordenação.
Mudaram as condições disponíveis para elas. As famílias se sentiram
fortalecidas e tiveram o apoio dos professores, dos técnicos das equipes de
reabilitação e obtiveram a aprovação da comunidade mais próxima. A barreira foi
transposta e essas pessoas não aceitam mais ficar abrigadas nas instituições
especializadas.
Muitas vezes, para a educação inclusiva de estudantes com
deficiência física faltam condições arquitetônicas, de mobiliário, recursos
pedagógicos, de transporte e o olhar da comunidade escolar ainda não está
suficiente. Existe “bullying” contra elas? Não se duvida já que se trata de um
problema geral, a ser enfrentado por todos e não admitido. Entretanto, nada
disso representa obstáculo à inclusão das crianças com deficiência física na
escola comum, nas classes comuns e nas rotinas da escola. Se a sala de aula é
no pavimento superior e a escola não dispõe de elevador ou rampa, troca-se de
sala, aceleram-se as obras de acessibilidade e o problema vira assunto dos
conselhos de direitos das pessoas com deficiência e de educação. A denúncia
chega ao Ministério Público e, mesmo a mídia, tão arredia ao tema da
deficiência, se manifesta contra a violação dos direitos daquele aluno. É
impensável devolver essas crianças às escolas especiais até que a escola
regular esteja preparada. A escola tem a obrigação de mudar, de providenciar
tudo agora.
O debate sobre a educação das pessoas com deficiência
deveria ser pautado pelo texto constitucional “no sistema educacional inclusivo
em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida”. Foi esse
avanço que as vozes do “Nada sobre nós sem nós” exigiram constar na Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, marco constitucional do país
(Decreto 6949/2009, art. 24). Lamentavelmente, legisladores e juristas
desconhecem ou não sabem interpretar a mudança. O mesmo texto reconhece “a
necessidade de promover e proteger os direitos humanos de todas as pessoas com
deficiência, inclusive daquelas que requerem maior apoio”. Portanto, é claro
que nenhuma condição de deficiência exclui a pessoa da proteção que a Convenção
assegurou. Caso contrário, será discriminação por motivo de deficiência.
Apesar da Convenção, alguém como um Stephen Hawking, por
apresentar deficiência múltipla, não teria a oportunidade de viver no ambiente
inclusivo no Brasil. Sua capacidade seria questionada e perdida, a não ser que
muitas adaptações e apoios necessários fossem providenciados. Mas as escolas
ainda não estão preparadas para eles. Quantas pessoas com deficiência e altas
habilidades se encontram esquecidas pela sociedade, ainda que toda proteção
lhes seja dada.
Voltando ao que me fez escrever. O movimento das pessoas
com deficiência se define como “de pessoas” em contraposição aos dominantes,
que falavam por todos, caracterizados por serem “para pessoas” com deficiência.
Em razão desse cenário, impôs-se o lema “Nada sobre nós sem nós”, assumido
mundialmente, para que leis, programas de governo, quaisquer iniciativas não
possam ser elaboradas, aprovadas e implementadas sem a participação direta das
pessoas com deficiência.
Debater a Meta 4 sem a voz das lideranças, sem a presença
maciça das pessoas com deficiência, ainda que já tenham ultrapassado os muros
das escolas especiais é tão absurdo que não consigo entender. Dói
profundamente. Estariam discriminando com base na deficiência intelectual,
múltipla ou no transtorno do espectro autista? Por ser mais recente, a política
nacional desse último grupo merece ser destacada e nela se encontra,“ o gestor
escolar, ou autoridade competente, que recusar a matrícula de aluno com
transtorno do espectro autista, ou qualquer outro tipo de deficiência, será
punido com multa de 3 (três) a 20 (vinte) salários-mínimos” (Lei 12.764/2012,
art.7º).
Embora alguns poucos estejam de fato envolvidos no debate
do PNE, faço uma provocação aos progressistas que participaram da elaboração e
da ratificação da Convenção e a todos que defendem o texto na teoria. Onde
vocês estão? Vão deixar de lado o bom combate? Esqueceram-se de que ninguém
fala por vocês? Estão incluídos a tal ponto que não precisam mais pensar na
educação inclusiva na educação básica? Acreditam que inclusão na escola é para
quem pode?
A omissão é um desserviço à causa da inclusão. Trata-se
de um problema delicado que afeta a todos e não temos desculpa para deixar
algumas pessoas com deficiência por conta e risco de pais, instituições
especializadas e senadores.
Seja qual for a posição do movimento das pessoas com
deficiência, desejo conhecê-la. Preciso saber o que pensa cada conselheiro dos
direitos de todas as pessoas com deficiência. Não ouvi a opinião do fórum de
gestores que atuam na área da inclusão. Desconheço a participação desses grupos
politizados que deveriam ser os principais atores do debate da Meta 4. O tempo
esgota-se em poucos dias e, até agora, vence com sobra o “tudo sobre nós com os
outros”.
*Izabel Maior é médica, cadeirante, ativista jurássica.
Participou da elaboração e da ratificação da Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência. Foi titular da CORDE-Nacional e da Secretaria Nacional
de Promoção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, entre 2002 e 2010.
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